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Descobertos e (re)misturados

Artigo feito sob encomenda para a edição n.45 da Revista ABCDesign, codinome "Origens"

por Fabianne Balvedi



Era junho de 2004, e eu estava em uma das apresentações mais badaladas do FISL V – Quinto Fórum Internacional Software Livre.

Apesar de trabalhar com programas de código aberto desde 2001, fazia muito pouco tempo que eu havia começado a realmente compreender o significado da complexa filosofia por trás de todo aquele movimento. Era também a minha primeira vez no evento e eu me sentia completamente encantada. Com aquele sentimento do tipo “que bom que existe gente assim nesse mundo”.

Na época do evento, eu colaborava principalmente com a lista de discussão dos articuladores de cultura digital, um para-raios de pessoas interessadas em hackear o Ministério da Cultura para promover um programa de fomento e difusão cultural a partir de bases fundamentadas na produção cultural de sociedades civis organizadas. Essas articulações ajudaram a fundamentar o que veio a ser o projeto dos Pontos de Cultura, o do-in antropológico capitaneado pelo Programa Cultura Viva e que hoje busca ser transformado em lei.

A apresentação em questão celebrava o lançamento no Brasil das Creative Commons – uma suíte de licenças de uso que têm como objetivo flexibilizar os direitos autorais de uma obra a partir de uma decisão do autor/a em liberar uma parte ou seu todo para uso, reuso, remix ou até mesmo colocá-la totalmente em domínio público. Segundo seus desenvolvedores, o objetivo seria trazer para os bens culturais a mesma filosofia de compartilhamento existente no software livre. O uso dessas licenças era um tema frequente nas conversas da lista dos articuladores, e por isso muito me interessava.

A mesa de celebração contou com a presença do então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, que declarou que o modus operandi das redes de software livre poderia servir como “instrumento de desapropriação dos latifúndios que hoje dominam a indústria cultural.” Um dos principais fundadores da entidade homônima que criou as Creative Commons, Lawrence Lessig, também presente na mesa, alertou para marginalização que os defensores da liberdade de software vêm sofrendo em seu próprio país, os Estados Unidos. “Partilhar, dividir e distribuir são vistos como atividades subversivas. Hoje há uma verdadeira guerra do copyright. E quem não adere é terrorista. Então, até as crianças, quando fazem suas pesquisas na rede, são terroristas?”

De todas as falas desse dia memorável, a que mais me tocou foi a do então diretor da Escola de Direito da UFRJ, Joaquim Falcão. Como na música de Caetano Veloso, não por conta de seu conteúdo exótico, mas pelo fato de, até aquele momento, ter ficado oculta em minha mente, quando teria sido óbvia.

Coube ao Prof. Joaquim proferir a primeira das palestras da mesa. E, nessa introdução, sabiamente buscou, em algumas de nossas origens, como nos tornamos a quarta parte do mundo, uma conexão com a presente celebração: o fato de que o livre fluxo das informações contidas nas cartas documentais escritas à época dos descobrimentos foi “fundamental para a empiricização, descentralização e diversificação do progresso.”

Os navegadores escreviam cartas como relatórios, uma prestação de contas a seus reis e financiadores, escritas a partir de suas observações durante as viagens. Depois de lidas por seus destinatários, as cartas navegavam livremente de mão em mão, de cidade em cidade, anunciando as novas descobertas. A Américo Vespúcio, “descobridor” do Novo Mundo, atribui-se a escrita de pelo menos cinco cartas. Dessas, apenas três tem sua autoria comprovada: as cartas de Sevilha, de Cabo Verde e de Lisboa. As outras duas seriam apócrifas, de autenticidade não comprovada: as cartas Mundus Novus e Quatro Navegações. Segundo o professor, foi o livre fluxo dessas cartas que ajudou a tecer a rede das comunicações do século XVI.

A carta de Lisboa foi a mais fundamental de todas, pois corrigiu o erro histórico de Colombo de achar que chegara às Índias e registrou corretamente a chegada a um mundo ainda desconhecido pelos europeus. “A carta de Lisboa servirá de base para a Mundus Novus”, relata o professor. “Entendendo sua construção e circulação, seguindo seu rastro e paradeiro, entendemos o erro de atribuição de autoria e avaliamos suas conseqüências para os dias de hoje, diante do desafio de regulamentar o fluxo de informações por meio do direito autoral.”

Um desconhecido manuscrito em italiano intitulado de “Máximas saudações de Américo Vespúcio a Lorenzo di Pierfrancesco dei Médici” teria originado a escrita da Mundus Novus. Título nada atrativo, numa língua restrita, de difícil circulação. Sua primeira modificação foi passar do italiano de poucos para o latim de muitos. Uma nova edição feita em 1504 descartou as burocráticas “Máximas Saudações” do título e em seu lugar surgiu “Mundus Novus”.

Em 1505, Johann Froschauer acrescentou imagem ao texto com a primeira xilogravura sobre o novo continente. Com imagem e texto, permitiu-se ao leitor ver o inenarrável e dessa forma acendeu-se a imaginação de todos, atiçando ainda mais a curiosidade sobre as novas terras. Mundus Novus é um panfleto, um cordel que, propositadamente ou não, serviu de publicidade para nossa colonização. E também para outro erro histórico: o erro de atribuição de autoria que nos fez nascer americanos.

“Imaginemos, porém, que Mundus Novus tivesse sido escrita por Vespúcio hoje”, pede o professor. Quais seriam as consequências? O que fariam os advogados de Vespúcio ao tomarem conhecimento das sucessivas alterações, traduções e das múltiplas edições não expressamente autorizadas por seu cliente?

Uma das mais prováveis respostas é que tentariam proteger os direitos autorais. E também muito provavelmente teriam sucesso em seus pleitos. Américo Vespúcio morreria mais rico, porém anônimo, pois o erro de autoria possivelmente também teria sido evitado. Mas o século das descobertas também teria muito menos leitores. Segundo conclusões do professor, “talvez Montaigne, Boticelli, Da Vinci, Erasmo e outros navegadores e potentados não tivessem lido Vespúcio. O livro Utopia talvez tivesse sido retirado de circulação. Não teria chegado até nós. A imaginação européia teria sido menor. Thomas Morus seria menos. No máximo, um plagiador. E, se assim ficasse para a posteridade, não teriam ingressado no mundo da cultura obras intelectuais tão distintas quanto a Nova Atlântida, de Bacon, as Viagens de Gulliver, de Swift –obras diretamente inspiradas pelo relato de Morus. A própria palavra 'utopia', por ele inventada, poderia não existir.”

Difícil pensar em um mundo ausente de reflexões utópicas. Mas, ao que tudo indica, parece ser um rumo que boa parte da humanidade escolheu. Hoje, 9 anos depois, o recente suicídio de Aaron Swartz, cofundador da Creative Commons, processado impiedosamente pelo governo dos EUA por supostos downloads ilegais, nos faz perceber que o cenário pintado por Lessig não somente continua a existir, mas parece ter piorado ainda mais. No Brasil, a atual legislação não considera a potencialidade do desenvolvimento científico e tecnológico mundial a partir das tecnologias digitais de informação e comunicação, que tem possibilitado um avanço significativo no acesso e circulação das informações e das culturas entre as pessoas. Restringe de forma intensa a possibilidade de cópia e troca de informações, inclusive para fins educacionais. A reforma da Lei do Direito autoral proposta em 2007 está parada e o Marco Civil da Internet não consegue sair do papel.

Tempos difíceis para os navegantes do século XXI.

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Links relacionados:

O que é o software livre?
http://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt-br.html

Fórum Internacional Software Livre
www.fisl.org.br

Creative Commons Brasil
http://creativecommons.org.br/

Pontos de Cultura
http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1

Reforma LDA
http://www2.cultura.gov.br/site/tag/reforma-lda/

Marco Civil da Internet
http://culturadigital.br/marcocivil/

Mundus Novus: por um novo direito autoral
(artigo do Prof. Joaquim Falcão)
http://direitogv.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/mundus-novus-por-novo-direito-autoral

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tags: direito autoral, cultura, revista, história, acbdesign, marco civil internet, remistura, origens, cartas apócrifas

enviada por: fabs em: 03:34 - 27/12    |    permalink    |    0 comentários    |    comentar