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da Épica e da Lírica

Capítulos sobre o discurso lírico de David de Ugarte, um dos fundadores do movimento cyberpunk espanhol e uma das pessoas mais lúcidas que conheci no que diz respeito à análise do funcionamento das redes sociais.






Épica e Lírica no discurso dos blogs


Nas conversas abertas dos últimos dias no Chile, certamente a que mais chamou atenção foi gerada pela distinção entre épica e lírica e as opções éticas que surgiam a partir dela.

O contexto desta distinção vinha se dando, no Chile, através de minha aproximação com Atina e minha rejeição de que a caracterização de sua ação como algo “muito bacana” não tinha maior valor que as opções partidárias ou políticas baseadas em confrontações. Ao contrário, argumentava, a opção pela lírica projetava uma alternativa e novos consensos sociais de uma forma que, na minha opinião, é muito mais potente que a épica em que estão conformados os mitos da esquerda desde os anos setenta.

A lírica, entendida como forma de projetar opções de futuro a partir daquilo que se vive, se sente, se desfruta e se faz no presente, não é mais que uma representação em relato de um "ethos" particular, de uma maneira de viver que se cultiva como opção entre outras, que não busca anular o campo de outras e nem negar-las. A lírica convida a somar-se sem diluir-se, busca a conversação, não a adesão. Trata-se de uma opção ética frente à dimensão excludente, de sacrifício e de confrontação que irremediavelmente cultiva a épica.

Mas na realidade, antes da primeira conversa com Jorge Dominguez, amigo e guia de meus primeiros passos naquele país, a aplicação da distinção nos meus escritos tem uma genealogia que eu gostaria de contar. Faz tempo que Roger Colom criticava o que ele identificara em geral na emoção dos mitos com a épica do relato. Segundo Roger, a lição a se extrair da trajetória do ciberpunk espanhol em geral e do grupo que impulsionou a Bitácora de las Indias em particular, estava em sua aposta pela lírica frente à épica como forma de relato configuradora de mitos e realidades de um novo tipo.

Assim comecei a trabalhar com essa distinção... distinção que sem dúvida não é novidade em absoluto, salvo talvez em sua tradução ao blogar, a este quero fazer um belo blog como parte de uma bela vida tão querido dos sionistas digitais.

Em Sobre o amor e a morte, Patrick Süskind confronta ao lírico Orfeu – humano e criador mítico das primeiras canções – com Jesus de Nazaré.


  • {Orfeu} havia perdido sua jovem esposa mordida por uma serpente venenosa. E está tão desconsolado com esta perda que faz algo que pode nos parecer demente, mas também completamente compreensível. Quer devolver vida a sua amada morta. Não é porque colocou em dúvida o poder da morte nem o fato de que ela teve a última palavra; e muito menos se trata de vencer a morte de uma maneira representativa, em beneficio de toda a Humanidade ou de uma vida eterna. Não, só o que quer é que lhe devolvam a ela, sua amada Eurídice, e não para sempre e eternamente, senão pela duração normal de uma vida humana, a fim de ser feliz com ela na Terra. Por isso, o descenso de Orfeu ao submundo não deve interpretar-se em modo algum como uma empreitada suicida, e sim como uma empreitada sem dúvida arriscada, porém totalmente orientada à vida e que inclusive luta desesperadamente pela vida (...)

  • Temos que reconhecer que o discurso de Orfeu se diferencia de forma agradável do tom rude de comando de Jesús de Nazaré. Jesus era um orador fanático, que não queria convencer senão a quem reclamava uma servidão incondicional. Suas manifestações estão salpicadas de ordens, ameaças e do reiterante e apódico “porque eu vos digo”. Assim falam em todos os tempos os que não amam nem querem salvar a um só homem, e sim a toda Humanidade. Orfeu, por outro lado, somente ama a uma e a ela apenas é que quer salvar: Eurídice. E por isso seu tom é mais conciliador, mais amável (...)

  • O nazareno nunca comete erros. E mesmo quando parece cometer-los – por exemplo, ao admitir a um traidor em seu próprio grupo – o erro está calculado e forma parte do plano de salvação. Orfeu, por outro lado, é um homem sem planos nem habilidades sobrehumanas e, como tal, capaz em qualquer momento de cometer um grande erro, uma incrível estupidez... o que faz com que nos pareça novamente simpático. Se alegra travessamente – quem poderia pensar mal dele? - de seu êxito. Conseguiu algo que, antes dele, ninguém havia conseguido.

Talvez muitos amigos, fartos de suas contribuições desqualificadas como auto-promocionais, tenham sorrido com sua última pergunta retórica. E com certeza muitos cristãos se sentiram excluídos da visão de Jesus que utiliza Süskind. Não importa, não é a relevância desta citação. Troquem Jesus por Che Guevara ou por qualquer líder salvador, por qualquer que um faça da épica, do último sacrifício, do desejo de morrer pelos outros, a base de seu relato de futuro.

A chave que certamente assinala o autor alemão é que o épico vai indissoluvelmente ligado ao amor aos demais como abstrato. Por isso, a solução que aporta o herói é necessariamente totalizadora, e passa por cima de cada um como uma forma de resolver o todo. A épica é definitivamente monoteísta no sentido de que as grandes máquinas teóricas da Modernidade o são.

Orfeu, a lírica enfim, parte da humanidade de um entre muitos, do amor e do concreto, da pessoa – que não o indivíduo – assumindo-se e projetando-se sobre todos a partir do reconhecimento da própria diferença, e de cada um dos demais. Orfeu oferece e inova sem tentar elevar nem fazer os outros aceitarem uma verdade única universal. Por isso seu relato se faz aceitável desde a pós-modernidade, porque sua ação e seu relato não pretendem ser o fechamento de nada, senão uma parte da grande festa de sua própria vida. Uma festa com portas abertas. Por isso a lírica abre uma conversação. A partir dela cabem tanto a inconclusão como o irônico distanciamento, mas não a excomunhão.

Na épica, por outro lado, só cabe a adesão ou a exclusão, pois somente fala o herói, filho do Deus de um logos (razão e palavra) que não reconhece outra verdade que a sua própria,


A Lírica, a felicidade e o poder das redes



Não faz muito tempo, Desmond Morris dedicou um curioso ensaio à felicidade. Definia ela como um súbito transe de prazer que se sente quando algo melhora e fundamentava como um lucro evolutivo de nossa espécie, como um prêmio genético que recebemos nós, criaturas de uma espécie que se fez curiosa, basicamente pacífica, cooperativa e competitiva, para poder adaptar-se e superar-se em um meio diverso e em constante mudança.

Morris argumenta que, se a felicidade é passageira, é porque está ligada à mudança. Assim, o mui reiterado lema de Juan Urrutia deixar-se arrebatar pela mudança, resumiria como ninguém o atrativo irrenunciável da lírica e da inovação e sua perspectiva prazerosa do futuro.

A lírica das redes é um canto de prazer, da felicidade provocada pela mudança. É uma lírica rebelde no sentido em que a rebeldia se incorpora à teoria das redes sociais: ao cantar a felicidade produzida pela mudança, pela inovação, ao aumentar a expectativa do prêmio a receber a quem se una, convida a reduzir o umbral de rebeldia do ouvinte, impulsionando a extensão dos novos comportamentos e, precisamente por ele, a coesão social.

Neste quadro a lírica, entendida como o relato da felicidade, a partir da felicidade ou em sua expectativa, supõe um convite à mudança desde o exemplo do explorador, do cartógrafo que reduz os riscos experimentando por conta própria para fazer públicos os resultados. Frente à épica do conquistador, do combatente, que prefigura uma sociedade de sacrifício e conquista, de indivíduos sofredores em posse de um plus ultra, de uma vitória final que dê sentido à Paixão sofrida, a lírica da inovação social se parece com o relato apaixonado de um naturalista que vive um descobrimento permanente e progressivo, que sabe o mais além infinito e valoriza a trajetória em si mesma, como uma obra completa, como uma reinvenção permanente, uma ressurreição prazerosa.

A épica se adapta mal às redes. Ao menos a das culturas meridionais, porque é coisa de indivíduos, de solidões. Prometeu cumpre exilado o seu castigo. O Jesus épico, o do martírio, é um Jesus solitário (Pai, por que me abandonaste?). O Cristo da Ressurreição é um feito social, visita seus amigos e sua mãe, reconstrói a rede rompida pelo esgotamento sofrido pelo seu próprio sofrimento naqueles que lhe amavam, devolvendo a fé esgotada e antecedendo o grande milagre pentecostal: a multiplicidade da palavra para cada um dos membros do cluster original.

É difícil expressar até que ponto, a partir do olhar e da prática das redes, o indivíduo é uma abstração aberradora. Não somos indivíduos, somos pessoas definidas não só por um ser, senão por um conjunto de relações, de conversações e expectativas que configuram uma existência.

O que vale para o indivíduo não vale para a pessoa. Não está no inimigo nosso espelho quando um não é um senão vários. O esforço épico é o esforço por obter uma identidade coerente sobre confrontação, por fazer inimigo de todos o que é inimigo de um. Por isso, a épica simplifica e homogeniza. Mas a lírica nos diz que nossa identidade não reside no que é, senão no que vemos possível alcançar, a felicidade da mudança seguinte, da próxima melhora possível. Convida-nos, pois, a fazer caminho, cada qual o seu, e não aceitar um único caminho.

Por ele a épica vê o coletivo como organização, como molde, como exército, como resultado de um plano ou uma vontade trágica. O Che relata a Bolívia como um Cristo sofredor abandonado pelo povo-pai. Ja a lírica discursa o coletivo a partir do comum, como uma magia (a Orfeu os gregos atribuíam com certeza a sua invenção), como uma imagem resultante de um refazer-se de práticas, de experimentos, de jogos. Nada mais longe da chejiná kavalística e messiânica que culmina na Nova Jerusalém que o direito à busca da própria felicidade dá em contraponto subversivo e lírico à ordem moderna da Constituição americana.

E é este o marco a partir do qual o poder se define em ambas as formas de relato como algo realmente oposto. Em uma épica, o poder emerge como resultado da batalha. Atrás dela cai um vazio ou um novo ciclo fractal de guerra a nova escala. Atrás da Ilíada a Oréstia. Do sacrifício de Ifigênia à perseguição de Orestes por sua própria mãe, em meio ao trunfo de Agamenon: a Tróia enganada, envelhecida e arrasada.

Do relato lírico, o poder emerge como consenso, como resultante coletivo de um experimento testado por muitos, de um caminho que descobre um marco pelo qual passa, para muitos, o caminho de construir uma existência arrebatada pela mudança. O poder lírico emerge de sua capacidade para gerar novos consensos, de desenhar novos jogos, novas experiências que muitos ou todos em uma rede concordem que é uma melhora, como fonte de felicidade para cada um.

Construir um belo blog como suporte de uma bela vida. Construir e cantar o construído. Porque no fim, pode haver maior triunfo que o de construir a felicidade desde o pequeno?


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enviada por: fabs em: 02:10 - 07/02    |    permalink    |    0 comentários    |    comentar

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